Húbris, Integridade e Moral em Mago: O Despertar

icarus_drowning_by_mopeydecker

Húbris (que lê-se “íbris”, mas eu acho mais legal “úbris” mesmo) consiste no pecado do excesso de orgulho, a presunção, a arrogância. Contudo, é importante examinar o significado disso, pois trata-se de uma noção diferente da que podemos estar familiarizados. Tal é o objetivo deste texto, e, além disso, será interessante relacionar o sentido de húbris original com a temática de Mago: O Despertar.

♠♣♥♦

Quando falamos sobre pecado, na nossa cultura judaico-cristã ocidental, estamos nos referindo aos atos que desobedecem os mandamentos de Deus, como apresentadas por Moisés no Antigo Testamento, ou como reinterpretada por Cristo e seus apóstolos no Novo, ou, ainda, as leis da Igreja que se tornaram prática comum entre as pessoas desde a Idade Média. É pecado, por exemplo, matar alguém, desrespeitar os pais, amar perdidamente outra coisa que não seja Deus, ou mesmo pronunciar seu nome impronunciável em vão. Também consideramos pecado, a preguiça, a inveja, a ganância, a ira, a luxúria, a gula e o orgulho, que, de certa forma, se relacionam com os Dez Mandamentos e com muitas das coisas pregadas no Evangelho, mas que foram formalizados assim pela Igreja.

Uma pessoa que peca, se tiver moral e decência (cristã), automaticamente se sente culpada e deve se arrepender do que fez, publicamente e para si mesma, pendido perdão, confessando-se e agindo de maneira a reparar o que fez. É interessante notar que esses aspectos estão tão presos à história das culturas ocidentais que se enraizaram nos comportamentos das pessoas, de uma forma ou de outra. Também é interessante notar, por outro lado, que tendemos a acreditar que é natural aquilo com que nós e nossos antecessores estão acostumados. No entanto, essa noção de pecado, e tudo o que vem junto com ela, não é inerente à humanidade, e não é surpresa dizer aqui que a cultura grega tinha uma noção diferente.

Para examinar essa noção, é preciso retomar algumas coisas da teogonia, ou seja, a narrativa da criação do cosmos. Quando os deuses derrotaram os titãs, Zeus, senhor dos deuses, organizou e distribuiu o cosmos justamente entre todas as partes. Isso significa, por exemplo, que, quando Poseidon recebeu os mares para governar, e que a Artemis foram dados os bosques e as caçadas para proteger, tanto eles quanto as outras divindades receberam aquilo que lhes era justo receber.

Mas não só as divindades, as pessoas e os outro seres também. Dessa forma, segue-se o raciocínio de que uma pedra é o que é porque recebeu justamente a oportunidade de ser uma pedra exatamente como ela é. Um sapo tem as características de sapo e vive como sapo, e não poderia ser ou viver de maneira diferente porque recebeu de Zeus e dos deuses aquilo que lhe era justo. Da mesma forma, você tem as características que tem e leva a vida que vive porque era isso que lhe era justamente cabido e lhe foi concedido por Zeus e pelos deuses.

Esse mesmo raciocínio implica na lógica de que, pelo desígnio das divindades, tudo está no seu devido e justo lugar. Os gregos acreditavam que o universo era um todo organizado (cosmo), funcionando perfeitamente, exatamente como deveria funcionar. Se uma pessoa era rei e a outra escrava, era porque os deuses assim designaram. A noção de que todas as pessoas são iguais só veio muito tempo depois, com o cristianismo.

Contudo, frequentemente as pessoas fugiam daquilo que os deuses designaram, e, assim, rompiam com a ordem natural e justa das coisas. E isso é húbris. Quando, por exemplo, um escravo se revoltava e tentava ser rei, suas ações causavam um distúrbio enorme na sociedade (provavelmente ele teria que roubar armas, matar seus senhores, libertar outros escravos, disseminar rebeliões), mas não apenas isso: ele perturbava todo o cosmos e a ordem natural do universo. Era como uma peça no relógio que decidiu não trabalhar perfeitamente com as outras engrenagens. O exemplo inverso também é válido.

É interessante notar que quase todas as histórias da mitologia grega são exemplos de húbris. A mais famosa provavelmente é a da fuga de Ícaro e seu pai, Dédalo, que, aprisionados, construiu asas usando cera e penas para fugirem voando; contudo, Ícaro voou muito próximo do sol, que derreteu a cera das asas e caiu para a morte. Ícaro é o exemplo perfeito de húbris pois ele quebrou a lei natural das coisas ao tentar ir além do que lhe era permitido.

Outro exemplo clássico de húbris é a de Prometeu, o titã que roubou fogo dos deuses e deu à humanidade, depois de Zeus tê-la condenado ao frio e à escuridão extinguindo todas as chamas do mundo. Prometeu violou claramente uma ordem do maior dos deuses, e, assim, os deuses presumiram que ele se considerava maior do que eles, que era arrogante o suficiente para desafiar as autoridades. Todos já sabem o fim trágico que o titã levou.

Existem várias outras histórias na mitologia grega sobre húbris. Recomendo dar uma olhada no rei Midas, Édipo, Odisseu e Minos, só para começar. Mas nem só de mitologia grega vive a húbris: o conto de Adão e Eva também é uma história de húbris. Na mitologia judaico-cristã, outros exemplos de histórias de personagens arrogantes desafiando a lei divina, são a Torre de Babel e a queda de Lúcifer. Essas histórias são importantes porque nos mostram que a temática da prepotência e excesso de orgulho não se restringiu a uma cultura.

Esses exemplos de húbris nos mostram outro aspecto importante, relacionado a dois outros conceitos/divindades da cultura grega: nêmesis e moira. Quando as ações de uma pessoa infringem a ordem natural das coisas (húbris), essas ações servem como um gatilho que ativam nêmesis, o processo que levará essa pessoa de volta ao seu lugar e restaurar o equilíbrio do cosmo. Nêmesis também era o nome da deusa da vingança, e, de certa forma, esse processo frequentemente consistia na vingança dos deuses contra o mortal arrogante. Quando a húbris disparava a nêmesis, esta era conduzida pela moira, o destino. Moira consistia no processo pelo qual as coisas iam se organizando naturalmente, em decorrência das ações das pessoas, para que o destino se cumprisse. Moiras também eram deusas do destino (acho que, na verdade, eram titãs, mas isso é discussão para outra ocasião).

Na história de Édipo, Laio, rei de Tebas, levou seu filho (Édipo) ao Oráculo, que lhe disse que o destino da criança era casar se com sua mãe e matar seu pai. Horrorizado pela revelação, Laio, que não consegue matar o próprio filho, abandona-o e ainda prega-lhe o pé, de tal forma que morra ali; contudo, ele é encontrado e criado por camponeses, e, quando cresce, começa a viajar. Em uma dessas viagens Édipo se desentende com outro viajante e o mata, sendo este seu próprio pai, o rei de Tebas. Além disso, Édipo acaba se casando com sua mãe, sem saber que era seu filho. Vale a pena conferir os detalhes da história em outro lugar. Mas isso já mostra o efeito de nêmesis e moira. A húbris de Laio o levou a tentar fugir do seu destino, abandonando o filho para morrer. Contudo, suas ações desencadearam uma série de outros eventos que garantiram que o destino fosse cumprido (e isso é moira, a inevitabilidade do destino), que acabou devolvendo Laio para seu devido lugar, a morte anunciada pelo oráculo. Ou seja, o próprio filho que ele deixou para matar tornou-se sua nêmesis, e, assim, agiu como vingança dos deuses (cujos desígnios foram desobedecidos) e restabeleceu a ordem natural das coisas.

É interessante notar com a noção de pecado, e suas decorrências, é diferente na cultura grega e na cultura judaico-cristã… como também é diferente da noção em Mago: O Despertar. Vou me ater ao sistema da segunda edição para as considerações a seguir, apenas comentando que é possível interpretar os pecados contra a Moral da primeira edição diferente dos pontos de ruptura (no original é breaking points e eu acredito que existe uma tradução melhor para esse termo, mas até agora não a descobri).

O sistema de húbris em Mago: O Despertar é apenas inspirado na cultura grega, como também na judaico-cristã. Quando um Desperto conjura uma magia para mudar as realidade Decaída, e, ao fazer isso, possuído por tamanha arrogância, ele tenta tirar mais poder da magia do que seria cauteloso fazer (reaching), ele pode acabar causando um Paradoxo: a magia foge de seu controle, geralmente de maneira caótica, desastrosa e frequentemente letal. Essa mecânica de paradoxos, no jogo, consiste no sistema de nêmesis que é uma temática central, uma vez que os paradoxos, e o Abismo, são um dos principais oponentes e desafios dos Despertos.

Em Mago: O Despertar, também podemos encontrar a noção de moira, dos gregos. Trata-se da Quiescência: a maldição que faz com que a alma dos Adormecidos sejam mantidas afastadas da magia pelo Abismo. Essa maldição não apenas impede que as pessoas Despertem e possam fazer magia, mas também faz com que, na presença de Adormecidos, paradoxos tendem a acontecer com muito mais frequência, e, como se isso não bastasse, as pessoas normais tanto podem destruir uma magia ao entrar em contato com ela (efeito conhecido como desfiadura), como irão esquecer de tudo o que viram se não possuírem uma força de vontade excepcional.

A Quiescência é o efeito moira dos gregos porque ela é a regra “natural” das coisas. Tendo sido imposta pelos Exarcas, a Maldição do Sono é a lei “natural” e “justa” pela qual as coisas acontecem. Dessa forma, cada Desperto é, em essência, um ser de húbris. A própria natureza do Despertar consiste em húbris contra os “deuses”. Como só isso não bastasse, ao tentar estender (reach) uma magia muito além do que lhe é cabido, ou por fazer Adormecidos terem contato direto com magias e outros fenômenos sobrenaturais, um mago está forçando o exagero do excesso de orgulho. É como se fosse húbris potencializada.

O jogo, no entanto, distingue atos de húbris e pontos de ruptura. De acordo com o livro básico das Crônicas das Trevas (pgs. 73-74), um personagem atinge um ponto de ruptura quando:

  • viola sua moral pessoal ou a moral da sociedade na qual vive;
  • experiencia algo aterrorizante, traumático ou que desafia sua compreensão sobre o mundo;
  • é vítima de um ataque sobrenatural, seja ele físico, mental ou social;

Quando atinge um ponto de ruptura, um personagem pode perder Integridade e isso tem severas consequências. Em Mago: O Despertar, a Integridade do personagem é transformada em Sabedoria, que o livro descreve (pg. 87, segunda edição) como a capacidade julgar como, onde, quando, por que e como usar magia. Note-se que a Sabedoria não substitui a Integridade, apenas a transforma, ou seja, Despertos também passam por pontos de ruptura, contudo, por motivos diferentes.

Seria contraditório um mago sofrer rupturas na sua Integridade quando fosse vítima de um ataque sobrenatural causado pela magia de outro mago. Contudo, isso pode não ser tão simples. Imagine um Desperto tendo sua alma arrancada por um feitiço de Morte, ou tendo sua mente estraçalhada por um mastigos (sempre eles, né? o povinho esses mastigos), ou ainda sendo possuído à força por um espírito conduzido por uma magia de Espírito? Acredito que esses seriam pontos de ruptura para muitos magos.

Fazer magia é certamente algo fantástico e que pode levar o mago a ter experiências inacreditáveis. Presenciar muitas magias não afeta a Integridade de um mago (o segundo ponto descrito acima), mas muitas coisas aterrorizantes e traumáticas podem decorrer de alguns feitiços, principalmente quando esses ocasionam paradoxos ou evocam entidades abissais.  Mesmo para quem viu muitas coisas bizarras, esse tipo de experiência ainda é traumatizante.

Atos de húbris acontecem quando um mago age ignorando as consequências da sua ação. Não é preciso dizer que tais consequências podem ser catastróficas para ele mesmo ou para outras pessoas, podendo levar ele mesmo ou outras pessoas a pontos de ruptura. É nesse sentido que fazer magia óbvia na presença de um Adormecido é um ato de húbris, pois o mago que faz isso está negligenciando que, para o Adormecido, aquilo é uma experiência potencialmente aterrorizante e traumática justamente por desafiar sua compreensão da realidade. Sem falar no paradoxo potencial que poderia colocar a vida de ambos em risco.

Atos de húbris são, necessariamente, ações do personagem. Nesse ponto, eles se distinguem de pontos de ruptura, uma vez que alguém pode passar por um ponto de ruptura sem ter feito nada, apenas por estar no lugar errado e na hora errada. Par acometer um ato de húbris, um Desperto tem que ter feito alguma coisa; tem que ter havido uma ação por parte dele. Isso não impede que possam acontecer “crimes culposos”, obviamente. Neste ponto, deve ter ficado claro que  atos de húbris podem consistir em pontos de ruptura (para o próprio mago ou até mesmo causar pontos de ruptura em outras pessoas, sejam Adormecidos ou não), mas nem todos pontos de ruptura são, necessariamente, atos de húbris.

Não é necessário dizer que o próprio jogo tem mecânicas que incentivam a arrogância desmedida dos personagens. Afinal, trata-se de um jogo dramático, e não haveria muito drama se não houver a ascensão e queda dos personagens. Há, inclusive, sistemas e ambientações que induzem a um dilema interessante, envolvendo húbris: se um Desperto não está sendo Sábio quando expõe a magia para Adormecidos, como lidar com aquelas facções políticas que acreditam que todos têm direito à magia, inclusive os Adormecidos?

São essas mesmas facções que acreditam que os atos de húbris são originados pelos Exarcas, e são eles que devem ser combatidos. Pode parecer que, com essa posição, estão incentivando que os Despertos cometam atos de húbris ao desdenhar das regras impostas pelos Exarcas, e de fato alguns extremistas radicais podem agir assim. Contudo, existem aqueles que defendem um caminho do meio, equilibrando o dever de conduzir a humanidade rumo ao seu legado místico, mas sem expô-la diretamente à magia (e à loucura dos paradoxos).

Mago: O Despertar, trata-se de um jogo complexo em vários sentidos, não apenas a quantidade e liberdade do sistema de magias, espero que isso tenha ficado claro. Além disso, muitas outras reflexões podem ser feitas quanto a essa temática: atos de húbris precisam ser necessariamente relacionados com magia? se desconsiderarmos  a Quiescência, pois ela foi imposta pelos Exarcas, quais valores devem fundamentar a moral dos Despertos? Como é possível reparar/compensar as terríveis consequências causadas pela húbris dos magos? Esses são alguns exemplos, apenas, de muitos outros pontos para reflexão. Acredito, no entanto, que este exame do tema e algumas de suas nuanças já cumpriu sua função. Para terminar, uma citação de Caio Júlio César, no seriado Roma, da HBO:

” It’s only hubris if I fail.”

4 comentários

  1. Daniel Cruz · setembro 30, 2017

    Ótimo texto e ótima reflexão. Ainda não migrei para a segunda edição, mas deu para tirar muitas lições a serem usadas na primeira edição. Muito bom ver material sendo produzido para o querido CofD. Continuo com o excelente trabalho!

    Curtir

  2. Pingback: O Tomo Proibido do Abismo | Arauto da Torre
  3. Pingback: O Tomo Proibido do Abismo
  4. Elton Veiga · setembro 6, 2020

    Obrigado pela explicação, esclareceu muita coisa.

    Curtir

Deixe um comentário